Olá Karatecas há três anos iniciamos a campanha #SetembroInclusaoNoKarate com o objetivo principal de promover a pratica do karate para os PcD (Pessoa com deficiência). Já mostrei por aqui, neste blog, grandes histórias de superação, são pessoas que realmente melhoraram sua condição de deficiente através da pratica da arte marcial, no caso o Karate-do.
Embora eu tenha plena convicção que exista muito trabalho pela frente, percebe-se que frutos foram colhidos em prol dos PcD e isso é um motivo de satisfação para todos aqueles que junto com este o blog se propuseram a divulgar a causa.
Esse mês minha tarefa é falar sobre um problema que afeta milhões de pessoas em todo mundo. Cerca de 39 milhões de pessoas em todo mundo são afetados pela cegueira, estima-se que em torno de 246 milhões de pessoas sofram de perda moderada ou severa da visão. Os dados são da OMS - Organização Mundial da saúde em 2019.
Enfim, o que quero apresentar esse mês a vocês é a perspectiva de um deficiente visual em sua incessante luta para treinar Karate, suas necessidades e anseios, além de mostrar os outros sentidos que são aprimorados em consequência a ausência de visão.
Hoje trago como convidado o Karateca Gilberto dos Santos Silva, que é deficiente visual e que treina de forma ininterrupta já a muitos anos, atualmente ele é faixa preta 1º Dan de Karate pela Federação Paulista de Karate (FPK).
Vamos a nossa entrevista...
Jefferson Oliveira: Gilberto conte-nos como surgiu a sua deficiência e como você lidou com isso no início?
Gilberto Silva: Nasci com um grau muito alto de miopia, que com o tempo pode ocorrer o descolamento de retina e foi o que ocorreu comigo. A visão esquerda foi afetada aos 7 anos e a visão direita aos 10 anos, mesmo com algumas cirurgias para tentar corrigir, não houve como reverter, pois tive hemorragia e ocorreu o descolamento total da retina. Naquela época, anos 90, os recursos eram mais escassos e não teve mais como mexer.
Ainda fiquei um tempo em casa para ver se havia outro recurso a ser explorado, mas um tempo depois comecei a fazer os cursos de reabilitação, aprendi a mexer com a bengala para a mobilidade e tive a oportunidade de aprender o braile, que é a forma de registro dos deficientes visuais. Aos poucos tentando reabilitar, esse processo de adaptação é constante, todos os dias temos que aprender algo novo. A reabilitação ocorre todos dos dias.
Jefferson Oliveira: E o Karate como surgiu em sua vida? Conte-nos um pouco de sua história no Karate.
Gilberto Silva: Nunca tinha tido contato com outro esporte, já tinha assistido futebol pela TV, mas nunca praticado e quando perdi a visão com 10 anos, na minha reabilitação precisei mudar de colégio, onde tive um colega que praticava karate há 6 meses e me chamou para conhecer. Foi em 2003, e naquela época o projeto era na Unicastelo e na minha primeira visita eu disse assim: “Isso é o que eu quero fazer até o fim da vida”. Já me apaixonei pelo karate e como dizem, foi “paixão à primeira vista”, não teve jeito (risos).
O karate foi algo que complementou em minha vida e sempre vou praticar, não pretendo parar não.
Desde 2003 nunca tinha parado, apenas para me recuperar de alguma lesão ou em período de férias, o que é natural. Só agora mesmo por causa da pandemia que tivemos que ficar em casa e nos resguardar. Foi a primeira vez que tive que parar com os treinos.
Jefferson Oliveira: Ouvi coisas boas falando sobre seu esforço para treinar Karate. Fale para nós qual a sua rotina para conseguir ir ao DOJO?
Gilberto Silva: Desde 2003 é a mesma rotina, sempre morei aqui no Capão Redondo, zona Sul de São Paulo.
Durante vários anos o projeto tinha a sua sede em Itaquera na zona leste e depois passou a ser realizado próximo à estação Patriarca do metrô.
Para realizar esse trajeto de ida e volta pego dois ônibus, metrô e faço baldeação e quando era em Itaquera pegava outro ônibus para chagar até o dojo que eu treinava. Atualmente, desço na estação Patriarca e de lá o dojo é pertinho da estação, um trajeto de aproximadamente 1 hora e meia a duas horas dependendo de como está o trânsito. Faço esse percurso de duas a três vezes por semana para treinar karate.
No começo lá em 2003, minha mãe ia comigo para que eu pudesse aprender o caminho, pouco tempo depois já estava indo sozinho.
Jefferson Oliveira: O que o Karate representa para você hoje? Como o Karate te ajuda a superar limites no dia-a-dia?
Gilberto Silva: O karate para mim, além da melhora da parte física, é claro, é uma filosofia de vida. Me ensinou muita coisa, me ensinou a crescer a ver coisas importantes em nossa vida, o que é importante mesmo.
Nos traz um equilíbrio mental, porque muitas vezes quando você é jovem você se estressa por qualquer coisa e quando pratica o karate você aprende a se controlar emocionalmente. Você foca a sua força para os pontos corretos, você aprende muita coisa com o karate.
Isso me ajuda nos desafios do dia a dia e a superar cada vez mais meus limites.
Então o karate é muito importante para a parte física, mental, educacional e todo mundo que eu conheço eu sempre indico... Faça uma arte marcial, conheça o karate, para que outras pessoas possam desfrutar dos benefícios do esporte. Isso é muito importante.
Jefferson Oliveira: Vejo que o Para Karate no estado no caso SP particularmente tem crescido bastante, qual a sua opinião sobre as competições? Qual foi a sua sensação quando entrou pela primeira vez em um Koto para competir?
Gilberto Silva: Eu acredito que as competições são muito importantes, primeiro para incentivar os atletas a continuar treinando e em segundo para demonstrar para todas as pessoas que independente da sua condição, idade, se tem deficiência ou não, todos são capazes, basta ter força de vontade e o preparo correto para você chegar onde quer. Também dá visibilidade para a categoria Para Karate.
Me senti muito bem na primeira competição, mas sempre dá aquele friozinho na barriga, cada competição é como se fosse à primeira. E acho muito importante sentir essa emoção, caso contrário perde o foco. Acho muito importante sentir essa emoção, significa que estamos nos dedicando de verdade àquilo que nos dispomos a fazer.
Jefferson Oliveira: Fiquei sabendo da iniciativa da FPK em criar um Departamento PcD para ajudar os Para Karatecas e uma das ajudas foi trazer a isenção aos exames para faixa preta naquela ocasião, como você recebeu essa notícia? Afinal como foi seu exame de faixa preta?
Gilberto Silva: O Departamento foi um divisor de aguas dentro da FPK, através deste departamento que tem a Coordenação Geral de um Para atleta o Sr. Oscar Garcia que cuida dos interesses dos Para desportistas de Karate a visualização e interesses foram interpretados de maneira mais transparentes e assim muitos Para atletas como eu tivemos nossos direitos defendidos e a fomentação nacional e internacional no Para karate de São Paulo e Brasil.
O exame de faixa eu também acredito ser muito importante, assim como as competições, mostra que você é capaz porque também é um incentivo para continuar seguindo em frente. Essa iniciativa da FPK foi muito importante e fiquei feliz em realizar o exame, esse apoio é fundamental, esse reconhecimento é muito legal.
Assim como na competição, há a questão do frio na barriga, mas para mim o mais difícil é a parte emocional. Me preparei de dois a três meses para realizar o exame e me senti bem, estava tranquilo. Saí satisfeito da minha apresentação.
Agradeço ao Presidente da FPK o Sr. José Carlos de Oliveira (Zeca) por criar o Departamento PcD e a todos que apoiam e incentivam as pessoas a realizarem os exames, isso é muito importante.
Jefferson Oliveira: Apesar do seu problema com a visão, imagino que você tem aguçados outros sentidos, quais são eles?
Gilberto Silva: Sim, isso é verdade. Após perder a visão, um dos sentidos que normalmente mais fica aguçado é a audição. Que você tem uma percepção maior de localização, de alguém que está se aproximando, de algum barulho na rua, então a audição é em primeiro lugar. Em segundo, vem o tato, especialmente para as pessoas que começam a aprender o braile, você tem um ganho maio de percepção do tato também, principalmente para pessoas que perdem a visão mais jovens. Para quem perde a visão com a idade mais avançada é mais difícil do tato ficar mais aguçado. O próprio olfato também pode ficar mais aguçado.
Jefferson Oliveira: Metaforicamente falando sabemos que a humanidade cada vez mais está se perdendo, digo nas relações com as pessoas, com a questão da solidariedade. Se você pudesse ter a sua visão de volta, o que você gostaria de enxergar no ser humano?
Gilberto Silva: É complicado! A gente estuda a história humana e a gente vê que o ser humano se degrada cada vez mais com o passar do tempo, infelizmente. A tecnologia avança, mas o ser humano é complicado.
Se eu pudesse voltar a enxergar, eu gostaria de ver mais paz no mundo, é algo muito importante que todos estamos precisando cada vez mais.
Acredito que é mais paz, para o futuro, porque para nós muitas coisas já passaram, mas para outros ainda a tempo, então um pouco mais de paz seria o ideal.
Deixe uma mensagem para os Karatecas.
Gilberto Silva: Todos nós estamos passando por esse período de pandemia e isolamento social, em alguns momentos nos sentimos tristes, isso é normal, mas nós temos que estar focados no que é realmente importante e nas pessoas especiais que estão em nossa vida e nas coisas que nos completam.
Eu acredito que o karate é um dos melhores companheiros para nos ajudar a superar esse momento. Então, gente, não vamos desanimar, vamos passar por isso. Vamos continuar nos guardando para quando chegar o momento de voltar aos treinos estarmos bem para treinar.
O karate está com a gente, vamos continuar com ele, não vamos largar não (risos).
Agradecimento
Quero manifestar aqui o agradecimento ao Gilberto, desejando-lhe muitos anos de treino, e que ele ainda que metaforicamente possa de fato um dia ver o mundo melhor, paz, como bem disse durante a entrevista.
Sucesso em sua vida, muita saúde, quero lhe dizer que foi um privilégio contar a sua história.
Quero agradecer ao meu amigo Oscar Garcia que atua como grande líder da comissão de Para Karate da FPK e que há três anos acreditou nesse projeto de inclusão e foi à luta.
Todo mérito a você guerreiro. Além do fato de me ajudar muito na concepção desta matéria.
Considerações finais
E hoje será bem curta!
“Você não deve ter a pretensão de fazer com que as pessoas enxerguem o seu interior, lá só você sabe o que tem. Você pode apenas agir para buscar o bem, o que já é muito melhor do que não fazer nada”.
Oss! Osu! Ossu!
Jefferson Oliveira
Professor de Educação física e estudante de Karate-do
Fonte:
www.com/portuguese/geral-48634186
Créditos finais:
Oscar Garcia Braga Neto, Jefferson Oliveira